Quando o céu se abriu como um ovo.
A chuva a encharcou completamente em um instante. Uma tempestade t?o forte que ela mal conseguia enxergar. Grim era apenas uma figura escura diante dela, mas Isla o escutou, sua risada profunda como o estrondo de um trov?o.
O vento soprou seu cabelo e vestido para trás, sibilou em seus ouvidos. As árvores abaularam, suas folhas dan?ando descontroladamente.
Grim estendeu a m?o e ela a segurou.
O castelo estava muito longe, e Isla n?o tinha certeza de que algum dos poderes do Umbra poderia protegê-los da chuva. Ele a conduziu até a constru??o mais próxima, o mosteiro que ela vira muitas vezes antes, com o olho de vitral na fachada.
Grim abriu a porta da frente com uma explos?o de poder sombrio e os colocou para dentro.
Ela estava ofegante, congelando e encharcada. Seu cabelo grudado no rosto em mechas bagun?adas, e seu vestido… seu vestido colava nela, delineando cada centímetro do corpo. Ela estendeu a m?o para tirar a coroa e viu que estava presa ao cabelo.
Grim estava a alguns metros de distancia, observando-a.
Ele também estava encharcado. O cabelo escuro espalhado na testa, pingando nas laterais de seu rosto. O tecido preto que ele sempre usava agora parecia muito fino, quase transparente, os músculos perfeitamente definidos. Sua capa pingava suavemente no ch?o de madeira do convento enquanto ele caminhava lentamente. E, quando ela olhou em seus olhos, n?o encontrou nenhum humor ali, nenhuma divers?o.
Grim parou a poucos centímetros de distancia, e Isla prendeu a respira??o. Ele foi em sua dire??o, ela ficou imóvel, e as m?os dele simplesmente foram para sua coroa. Seus dedos a puxaram gentilmente, com cuidado, os fios de cabelo enrolados no metal, soltando-os.
Ele puxou um peda?o um pouco forte demais, e ela produziu um som que fez Grim encontrar seu olhar imediatamente. Algo perverso dan?ou em seus olhos, algo que fez a parte de baixo da coluna de Isla se curvar.
N?o havia luzes na abadia, nenhuma chama. Apenas um único vitral arredondado na janela oferecia a silenciosa luz do dia enquanto a tempestade se alastrava, chuva batendo violentamente contra o vidro. Isla poderia ter jurado que os cantos escuros da sala escureceram ainda mais, como tinta se espalhando, sombras alongando em dire??o às fileiras de bancos.
Ela respirou fundo, trêmula, e se convenceu de que era o frio. Grim observou sua boca e disse: — Você está se sentindo… aflita, Devoradora de Cora??es.
Grim estava t?o perto que ela podia sentir a respira??o dele em sua bochecha, fria como a chuva lá fora, fria como os dedos que ainda estavam parcialmente atados ao seu cabelo.
— E você? — ela disse, sua voz apenas um sussurro. — O que está sentindo?
Grim sorriu.
— Ah — ele disse, olhos presos nos dela, como se quisesse ter certeza de que ela ouviria cada palavra —, o que estou sentindo n?o pode ser dito em um lugar assim.
Sua respira??o n?o deveria estar travando; seu pulso n?o deveria ter acelerado pela proximidade ou por suas palavras. Ela ainda n?o sabia por que ele tinha vindo para o Centenário ou o que ele estava procurando. Isla havia julgado seu povo pela imprudência em rela??o ao amor. Agora, ela os entendia um pouco melhor.
E a si mesma, um pouco menos.
O que estava fazendo? Ela sempre se considerou acima de tais desejos. Mais forte que sua m?e. Mais focada. Grim tinha dito que ela n?o podia confiar nele. Havia provado isso várias vezes.
Por que isso a fazia querer ficar ainda mais perto dele?
Com um último pux?o, ele libertou sua coroa. Grim franziu a testa, e Isla observou enquanto seu polegar percorria o amassado que Oro havia feito dias antes. Ele o consertou instantaneamente e a entregou a ela, no pouco espa?o entre os dois.
Ela a pegou com dedos trêmulos e trai?oeiros.
Ent?o ele se virou, deixando-a ali parada, as palavras presas na garganta. Ela agarrou a coroa com tanta for?a que as bordas ásperas perfuraram dolorosamente sua m?o. Recomponha-se.
O aviso de Celeste surgiu em sua mente. Ele era uma distra??o. Estava jogando com ela.
Ela sabia jogar também.
— Onde você estava naquela noite? — ela perguntou, a voz ainda um pouco sem f?lego. — Na noite das maldi??es.
Ele olhou por cima do ombro para ela. Sombras dan?avam a seus pés, seus contornos nítidos desvanecendo, distorcendo. Como se a própria noite estivesse vazando dele.
— Você realmente quer saber?
— Sim.
— Eu estava na cama.
As sobrancelhas de Isla se juntaram.
— Estava dormindo?
Ele a encarou.
— N?o.
Ah.
De repente a janela de vitral parecia muito interessante. Isla observou suas quatro ilustra??es atentamente, esperando que o calor que sentia em seu rosto n?o fosse visível na escurid?o.
Grim estava sentado em um dos bancos do mosteiro, cotovelos nos joelhos. Ele observava. Podia sentir seu olhar nela, mas n?o conseguia olhar de volta.
Em um instante, ele estava atrás dela. Isla sentiu sua respira??o em seu ombro nu e ficou tensa.
— Quando saí dos meus aposentos, tudo estava queimando e todos os governantes, mortos. — Ela se virou e encontrou seu rosto sério, como nunca tinha visto. — E eu era o governante de um reino. Quando tudo que havia treinado para ser era um guerreiro.
A escurid?o saiu dele em ondas, extinguindo até mesmo a pouca luz que entrava pela janela. Um relampago caiu do lado de fora, mas sua luz n?o os alcan?ou.
Isla engoliu em seco. Virou-se para encará-lo.
— Sei como é ter responsabilidades que você nunca quis… e nunca achou que merecia.
As m?os de Grim estavam fechadas com for?a ao lado do corpo. Ela alcan?ou e abriu uma delas. Passou um dedo pela palma da sua m?o e o sentiu ficar tenso na frente dela.
— Pode me mostrar? — perguntou, sabendo que n?o deveria.
Ele parecia saber que ela se referia a seus poderes. Sua extens?o, além da simples demonstra??o que ele havia dado semanas antes. E ela parecia saber que ele precisava de uma válvula de escape.
Grim a olhou atentamente nos olhos.
— Tem certeza de que quer ver? — ele perguntou.
Ela quase disse sim imediatamente, mas se lembrou da decep??o que sentiu com a resposta na última vez que ele a respondeu. Era um aviso, ela se deu conta.
Um aviso de que ela poderia ver algo que n?o gostaria.
Ainda assim, Isla assentiu. Ela queria ver. Poder bruto. A coisa que ela queria mais do que nunca.
Ele estava t?o perto que seu nariz quase tocou o dela.
— Aqui n?o. — Ele olhou pela janela. Isla ouviu a chuva, ainda furiosa, mas n?o t?o violenta quanto antes. — Você se importa de ir lá fora novamente?
Ela balan?ou a cabe?a e o seguiu para a parte externa do mosteiro.