Lightlark (Lightlark, #1)

A profecia para quebrar as maldi??es tinha três partes, que foram interpretadas de várias maneiras ao longo dos séculos. Uma era clara. Para que as maldi??es fossem erradicadas, um dos seis governantes tinha que morrer. Por isso o Centenário era algo t?o arriscado e temido, para o qual tanto se preparavam. Por isso Terra havia treinado Isla para lutar desde o momento em que ela deu seus primeiros passos.

O afogamento súbito de Isla poderia ter sido o primeiro passo para o cumprimento da profecia. Mas, por algum motivo, a pessoa na varanda quis mantê-la viva.

Por quê?

Sinos ecoaram pelo castelo, fazendo Isla levar um baita susto. Ela contou as badaladas, ent?o xingou.

Para aquele primeiro jantar, ela deveria ter passado uma hora arrumando o cabelo, fazendo um penteado complicado. Deveria escolher o vestido perfeito, passar lo??o de rosas na pele até brilhar e aplicar a maquiagem com precis?o, usando ferramentas que ela aprendera a manejar t?o habilmente quanto suas laminas de arremesso. Todas as coisas que Poppy tinha lhe ensinado.

Em vez disso, penteou o cabelo molhado com os dedos e quase escorregou no rastro de água deixado no ch?o. Colocou o primeiro vestido em que conseguiu p?r as m?os, cal?ou um par de chinelos de seda e pegou a coroa no último instante, colocando-a de qualquer jeito na cabe?a enquanto saia do quarto.

Quase esbarrou na mesma criada Estelar de antes. Sua boca pequena se abriu com o choque, e ela ergueu as m?os por instinto, protegendo-se de um ataque.

— Por aqui... Isla.

Vários corredores depois, as portas da sala de jantar se abriram e todos se viraram para olhá-la.

Isla desejou ser uma Umbra, só para poder desaparecer.

Celeste recostou-se na cadeira, as sobrancelhas levantadas.

Azul largou a ta?a que estava segurando.

Cleo a encarou com mais desdém que antes. Na pressa, Isla pegou um de seus vestidos mais ousados, um que tinha sido instruída a usar muito mais tarde no jogo. O corpete ficava à mostra, em uma estrutura quase transparente. A saia tinha uma fenda que subia pela perna até o alto da coxa. A capa era de renda verde, presa ao decote.

Grim parecia estar se divertindo. Acompanhava cada passo dela com tanta aten??o que ela corou de vergonha.

Havia mais alguém na cabeceira da mesa. O mesmo homem que a vira cantar — que devia ter salvado sua vida, e que depois a abandonou.

Oro, rei de Lightlark, governante do reino Solar. Seu cabelo era como um tecido dourado, os olhos em um tom forte de ambar e t?o vazios quanto favos de mel. Olhos cruéis que a prenderam no lugar. Ele franziu a testa e acenou com a cabe?a em boas-vindas, só por obriga??o.

Por que o rei tinha salvado Isla?

Se pretendia tratá-la com tamanho desdém.

Ela devolveu o aceno frio e ocupou o lugar vazio ao lado dele, xingando em silêncio a pessoa que a havia colocado ali.

O cabelo molhado de Isla caia sobre seu bra?o, água pingando pela pele até o ch?o e formando uma po?a. Seu corpo tremeu um pouco, congelando; o frágil e praticamente inexistente vestido n?o fazia absolutamente nada para aquecê-la.

A voz zombeteira estava de volta: Você está pronta, Isla?

Claro que n?o. Por que Isla tinha sido tola o suficiente para aceitar o convite para o Centenário? Por que tinha entrado de cabe?a em um jogo t?o mortal?

Um dos seis governantes tinha que morrer. Como a mais jovem e menos experiente, era uma tola por acreditar que n?o seria ela. Especialmente quando já quase morrera duas vezes em menos de um dia.

Se fosse esperta, iria embora naquela noite, usando sua varinha estelar.

Se quisesse viver, abandonaria a ilha, seu reino, seu povo, seu dever, e nunca mais olharia para trás. As terras além de Lightlark e das terras novas eram em grande parte inexploradas. Ela sempre se perguntou sobre o que haveria por lá. Seria uma viagem arriscada, mas certamente n?o mais perigoso do que enfrentar o Centenário.

Ela n?o poderia. N?o se desejava ser livre de verdade. Sua maldi??o jamais permitiria que ela tivesse a vida plena que queria, com as pessoas com que mais se importava. Terra. Poppy. Celeste.

Se tudo corresse como planejado, ela nunca mais teria que se esconder como se fosse um segredo. Ela nunca sentiria vergonha por ser quem era. Poderia levar seu povo à prosperidade e viajaria pelas terras novas à vontade, visitando Celeste sempre que quisesse.

Isla passara incontáveis horas de sua vida analisando outras pessoas, adivinhando suas motiva??es.

Sua motiva??o era a liberdade.

Oro observou seu cabelo pingando, e teve a coragem de sorrir.

— Sei que nossos mares s?o irresistíveis... mas por favor, no futuro, limite seus mergulhos ao início da noite, para n?o deixar o restante de nós esperando. — Ele levantou o queixo ligeiramente. A coroa em sua cabe?a era dourada e reluzente, suas pontas afiadas o suficiente para arrancar sangue. — Muito rude, mas talvez minhas expectativas para o seu reino fossem muito altas, para come?ar.

Os olhos de Cleo brilharam com zombaria, saboreando o vermelho que Isla sentia se espalhando por suas bochechas.

— Um mergulho naquele mar, a esta hora? Ela certamente é um bicho de estima??o selvagem. Nem mesmo um Lunar pensaria em fazer tal coisa durante o Centenário. Só mesmo um tolo.

Selvagem. Animal de estima??o. Tolo. A Lunar tinha conseguido inserir vários ataques em apenas algumas frases curtas.

— Certamente n?o na lua cheia — Isla disse tranquilamente, as palavras escorregando para fora antes que ela pudesse se conter.

Silêncio.

Talheres se chocaram em algum lugar do outro lado do sal?o.

A maldi??o dos Lunares significava que, em toda lua cheia, o mar reivindicava dezenas de vidas de seu reino, afogando qualquer um que estivesse muito perto da costa. Portanto, o comércio distante era quase impossível, a vida perto do oceano, um perigo, e a economia dos Lunares havia sido completamente paralisada.

No mesmo instante Isla se arrependeu de suas palavras. A forma como os olhos de Cleo se estreitaram, como uma flecha marcando o alvo, fez com que ela se sentisse, oficialmente, fazendo sua primeira inimiga.

Antes que alguém pudesse dizer outra palavra, um prato foi colocado à sua frente. Nele havia um cora??o sangrando.

— Oriundo do pior de nossas pris?es — Oro disse suavemente. — Um assassino de mulheres.

Foi preciso toda a vontade para Isla sorrir cordialmente para ele.

— Muito gentil da sua parte. No entanto, prefiro comer sozinha. Alguns acham... perturbador. — Ela procurou pela Estelar que a levara ao sal?o de jantar. — Poderia mandar isso para o meu quarto, para mais tarde?

— Bobagem — disse Oro. Ele olhou para o cora??o, ent?o para Isla. — Coma.

Ela podia sentir o olhar de todos sobre ela. Fazia tempo desde que tinham estado com um Selvagem. Isla pegou o garfo e a faca com cuidado, assentiu graciosamente para o anfitri?o, e cortou um peda?o. O sangue se acumulava em torno do cora??o, enchendo o prato. Ela sentiu o cheiro metálico.

Ent?o deu uma mordida.

Grim bateu a ta?a de vinho na mesa de forma rude.

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