Isla suspirou.
— Eu tentei. Mas foi só olhar para a tesoura, e Poppy quase me esfaqueou com ela. Confiscou todos os conjuntos de tesouras dos meus aposentos.
— Confiscou? — Celeste ergueu uma sobrancelha. — Preciso lembrar que você é a governante do seu reino?
Isla riu sem humor. Ela se virou para ir até os fundos de seus aposentos, e a m?o de Celeste foi direto em suas costas.
— Você trouxe?
Ela viu seu reflexo no espelho. Algo ao longo de suas costas brilhava levemente — deve ter sido a presen?a de Celeste. Ela xingou, esperando que ninguém mais tivesse notado, e puxou a varinha estelar para fora da roupa.
— Eu n?o poderia deixá-la para trás.
Celeste franziu a testa.
— é arriscado. Esconda bem.
Ela estava certa. Se alguém descobrisse que Isla tinha aquele encantamento, a alian?a secreta entre as duas estaria amea?ada.
Isla havia encontrado a varinha estelar nas coisas de sua m?e, cinco anos antes. Mais desesperada por liberdade do que com medo de ser transportada para algum lugar perigoso, Isla viajou pelas terras novas dos reinos por meses antes de finalmente conhecer Celeste. Aquela foi a primeira vez em que se encontraram.
Celeste imediatamente reconheceu a varinha como uma antiga relíquia Estelar. Isla n?o fazia ideia de como sua m?e colocara as m?os nela antes de morrer. E, como a família de Celeste havia morrido muito tempo antes, gra?as à maldi??o que condenava todos em seu reino a morrer aos vinte e cinco anos, ela também n?o sabia.
Embora pertencesse ao reino Estelar, Celeste nunca havia pedido o artefato de volta. Isso marcou o início da amizade das duas governantes, suas terras separadas por centenas de quil?metros, e uma coisa em comum: ambas precisavam desesperadamente quebrar as maldi??es neste Centenário.
Para Celeste, quebrar sua maldi??o era a diferen?a entre a vida ou a morte. N?o só para ela, mas para todo o seu povo.
Para Isla... as coisas eram ainda mais complicadas. Ninguém tinha percebido o quanto seu reino havia encolhido. Muito mais Selvagens tinham morrido do que nascido, e seus poderes ficavam mais fracos a cada gera??o. As florestas encolheram, animais e plantas haviam sido extintos. No ritmo em que suas terras e seu povo estavam se deteriorando, n?o haveria nenhum Selvagem vivo no próximo Centenário.
Isla nunca concordou com o plano de Poppy e Terra. Era muito complexo. Muito degradante.
Ent?o, ela havia criado uma nova estratégia com Celeste.
— Tenho que ir — disse a amiga depois de avaliar completamente o quarto de Isla. — Só para constar, seus aposentos s?o melhores que os meus. Embora meu quarto n?o esteja em um canto t?o antigo do castelo.
Isla revirou os olhos.
— Até o jantar.
Celeste virou-se para a porta e formou um sorriso malicioso.
— Que os jogos comecem.
CAPíTULO TRêS
SANGUE
Osol estava se pondo. Parecia uma pequena gema de ovo, quase desaparecendo no horizonte, quando Isla abriu as portas duplas e olhou para a lua que surgia. Ela estava se arrumando, ainda apenas de roupa de baixo. As cortinas brancas quase transparentes sopraram com a brisa, percorrendo seus bra?os, os joelhos nus e os dedos dos pés. Ela se esgueirou para a sacada, a pedra fria sob os pés. Inspirou sal e maresia.
Cuidadosamente, sentou na larga saliência de pedra, e colou os joelhos no peito. E, da mesma forma como fazia em casa, sozinha no quarto, sempre que se sentia ansiosa, solitária e aprisionada, come?ou a cantar.
Cantar era um dom dos Selvagens, algo sedutor. Assim como o canto de suas irm?s, as sereias do mar. A voz de Isla era linda de um jeito anormal, como seda e veludo e sonhos profundos. Ela sabia disso e gostava do som. Apreciava como sua voz podia ser t?o grave quanto o fundo do oceano e t?o aguda quanto o ruído do vento. Ela n?o precisava de música. O mar lá embaixo era o único instrumento necessário, suas ondas batendo violentamente nos penhascos brancos e angustiantes da ilha, como se estivesse tentando olhar para ela.
Ela cantou e cantou, palavras e melodias sem sentido, deixando sua voz ondular, atingir a nota mais aguda e voltar para a mais grave, como se estivesse desenhando em uma tela infinita. Ela cantou para o mar, para a lua, para a escurid?o crescente. Para todas as coisas que n?o tinha sido capaz de ver pelas janelas no reino Selvagem. Finalmente, terminou com uma nota aguda, deixando-a durar o máximo que o f?lego aguentasse. Sorriu para si mesma, sempre surpresa pelo que saía de sua boca. Sempre aliviada pela forma como isso afastava até mesmo seus pensamentos mais sombrios.
Ent?o alguém aplaudiu.
Isla se virou e viu um homem em outra varanda ao longe, t?o escondido nos rec?nditos do castelo que ela nem tinha notado. Praticamente de roupas íntimas e pega desprevenida, Isla se assustou. Virou-se rápido demais, espantada. Seus bra?os giraram nas laterais do corpo, mas n?o adiantou — a gravidade era forte demais.
Ela caiu para trás, escapando da borda.
Sua respira??o ficou presa no peito, e ela gritou em silêncio enquanto caía, agarrando-se ao ar noturno como se as estrelas fossem pontos de apoio.
Apenas o ar encontrou seus dedos, e ela caiu, caiu...
Até o mar rugindo lá embaixo. Sua cabe?a bateu na superfície.
Isla se sentou t?o rapidamente que vomitou água do mar. Sua garganta queimava. Ela piscou várias vezes. Limpou a boca com as costas da m?o.
E descobriu que estava de volta em sua varanda, com uma po?a de água em volta. O cabelo estava pingando. A roupa de baixo grudava no corpo, completamente encharcada. O topo de sua cabe?a latejava de dor. Quando seus dedos passaram cautelosamente pelo local, ela esperava encontrar sangue, mas n?o.
Isla estava viva. N?o se afogou, como deveria ter acontecido. Essa pessoa, o homem que estava observando-a... devia tê-la salvado.
Depois a largou ali, sem nem se preocupar se acordaria.
Quem faria uma coisa dessas?
A parte mais surpreendente n?o era o fato de que ele havia descartado Isla...
Mas que a tinha salvado.
Depois que as maldi??es foram lan?adas, houve caos. Naquela mesma noite, os seis governantes dos reinos se sacrificaram em troca de uma profecia que prometia ser a chave para o fim das maldi??es. Terra e Poppy diziam que sua ancestral tinha liderado os sacrifícios, a primeira a morrer.
Verdade ou n?o, Isla nunca poderia imaginar a for?a necessária para desistir de suas vidas pela chance de salva??o de seu povo. O poder que os seis injetaram na ilha e transferiram para seus reinos fizeram o Centenário possível. A cada cem anos, durante cem dias, os seis reinos tinham a chance de se salvar, por causa desse sacrifício.