Lightlark (Lightlark, #1)

E era tudo culpa de Isla.

Terra repetiu a pergunta, encarando-a com os olhos verde-escuros, da mesma cor da hera que envolvia o palácio dos Selvagens como uma película cobrindo tudo. Da mesma cor que os de Isla.

— Você está pronta?

Isla assentiu, embora seus dedos tremessem enquanto pegava a coroa à frente. Era uma simples coroa de ouro, adornada com bot?es, folhas e uma cobra sibilante em dourado. Ela a colocou na cabe?a, tomando cuidado para n?o bagun?ar os grampos que mantinham o longo cabelo castanho-escuro longe do rosto.

— Linda — disse Poppy.

Isla n?o precisava ouvir o elogio para saber que era verdade. A beleza era uma dádiva dos Selvagens — e uma maldi??o. Maldi??o que havia causado a morte de sua m?e e que tornava o fato de elas supostamente serem muito parecidas ainda mais perturbador. Poppy encontrou o olhar de Isla no espelho e disse em tom feroz:

— Você é capaz, passarinha. é melhor do que qualquer um deles.

Quem dera isso fosse verdade.

Uma onda de panico encobriu as fei??es de Isla. E se aquela fosse a última vez em que Isla veria suas tutoras? E se nunca voltasse para o seu quarto? Suas m?os agiram por instinto, estendendo-se para elas, querendo tocá-las uma última vez.

Antes que pudesse fazer isso, Terra lan?ou um olhar t?o severo que a fez parar.

O sentimentalismo é egoísta, parecia dizer.

O Centenário n?o era sobre ela. Era preciso salvar seu reino. Seu povo.

Controlando-se, Isla endireitou a postura e se levantou devagar, o peso da coroa parecendo muito maior.

— Sei o que devo fazer — ela disse. Todo governante chegava ao Centenário com um plano. Terra e Poppy martelavam o delas em sua cabe?a desde que Isla era crian?a. — Vou seguir suas ordens.

— Que bom — disse Terra. — Porque você é nossa única esperan?a.

O castelo dos Selvagens possuía mais lugares abertos do que fechados. Os sal?es eram pontes, as árvores estendiam seus bra?os para o corredor e os galhos agarravam suavemente seu vestido como se dissessem adeus. Folhas farfalhavam ao redor de Isla enquanto ela andava pelos c?modos intermináveis nos quais n?o tinha permiss?o para entrar, com Poppy e Terra logo atrás. As videiras se arrastavam pelas paredes. Pássaros entravam e saíam quando queriam. O vento uivava pelos corredores em uma brisa que fazia a capa de Isla esvoa?ar. Ela vestia um tom verde-escuro para homenagear seu reino, um tecido que marcava suas costelas, cintura, joelhos e caía aos seus pés. A capa era de um tecido delicado, t?o translúcido que qualquer pretensa modéstia era desnecessária. Essa escolha representava seu reino tanto quanto a cor.

Os Selvagens sempre se orgulharam de seus corpos, da beleza e das habilidades que tinham. Sempre amaram loucamente, viveram livres e lutaram com ferocidade.

Quinhentos anos antes, os seis reinos — Selvagem, Estelar, Lunar, Etéreo, Solar e Umbra — foram amaldi?oados, e suas for?as transformadas em seu próprio veneno. Cada maldi??o era perversa à sua maneira.

A dos Selvagens era dupla. Eles foram fadados a matar a pessoa por quem se apaixonassem — e a sobreviver exclusivamente de cora??es humanos. Transformaram-se em monstros de beleza terrível, com o cruel poder de seduzir com um único olhar.

Milhares de homens e mulheres Selvagens haviam morrido desde ent?o. O amor tornou-se proibido. Irresponsável. Poucas crian?as nasciam... e o nascimento de meninas sempre fora mais comum no reino. Ainda que o amor tenha várias formas, homens morriam com mais frequência quando as regras eram quebradas, e, aos poucos, os Selvagens se tornaram uma pequena comunidade formada, principalmente, por mulheres guerreiras. Temidas. Odiadas. E fracas, já que menos pessoas significava menos poder. O Centenário era a única chance de acabar com as maldi??es, retornar à glória de outrora e recuperar o poder de que tanto precisavam. Isla era a única chance.

Você é nossa única esperan?a...

Ela os ouviu antes de vê-los. Entoando cantos antigos, batendo suas laminas como instrumentos musicais. O controle dos Selvagens sobre a natureza estava em plena exibi??o. Flores desabrochavam e se espalhavam pela varanda, pelo corredor, parando somente quando alcan?avam os seus pés. Elas cresciam exponencialmente, duplicando-se repetidas vezes em uma po?a de pétalas, subindo pelos tornozelos. De acordo com a lenda, mil anos antes, os Selvagens conseguiam fazer crescer florestas inteiras apenas com o pensamento, mover montanhas com o movimento das m?os.

Agora, centenas de anos após a maldi??o e passado tanto tempo longe do poder da ilha, suas habilidades haviam diminuído para nada além de alguns truques bobos.

Isla caminhou cuidadosamente sobre as flores até o fim das paredes do castelo e ficou de frente para as centenas de Selvagens que a aplaudiam.

As árvores acima floresceram cerejas, amoras e flores vermelho-sangue, que caíam sobre a multid?o como uma chuva colorida. Os animais saíram da floresta e se juntaram ao grupo, sentando-se ao lado de seus companheiros. Os poderes dos Selvagens variavam pelo domínio da natureza e muitas vezes incluíam a afinidade com animais. Terra tinha uma grande pantera chamada Sombra com quem conversava com a mesma facilidade com que se comunicava com Isla. Poppy tinha um beija-flor que gostava de se aninhar em seu cabelo.

Quando Isla assentiu, a multid?o ficou em silêncio.

— é uma honra representar nosso reino neste Centenário.

O cora??o de Isla acelerou, um tambor ressoando em seu peito. Ela olhou para a multid?o, para os rostos belos e esperan?osos. Alguns Selvagens usavam trajes feitos de retalhos de tecido entrela?ados com folhas e videiras. Outros usavam somente espadas penduradas nas costas. Alguns tinham acabado de se alimentar, os lábios sujos de um vermelho profundo. Isla encarou seu povo e fez o possível para n?o tremer. Para n?o deixar a voz falhar, ou gaguejar, ou levantar dúvidas, por um momento sequer, do motivo pelo qual sua governante muitas vezes se escondia atrás das grossas paredes de seu castelo. Por que criados eram proibidos de entrar em seus aposentos. Ela tentou n?o se perguntar quantos desses Selvagens tinham ouvido aquelas mesmas palavras cem anos antes, vindas de uma governante diferente; quantos deles ainda restavam depois da série recente de mortes. Ela fez uma promessa, porque era isso que seu povo queria. Alguém que os tranquilizasse. Que demonstrasse for?a.

— Prometo quebrar nossa maldi??o… de uma vez por todas.

Eles tinham todo o direito de estar preocupados. O fracasso de Isla os condenaria por pelo menos mais um século. Já eram quatro Centenários fracassados. Isla cerrou os dentes, esperando que sua inseguran?a fosse notada; esperando que estivesse errada quanto ao que eles queriam.

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